Para Além da Curva da Estrada
(Fernando Pessoa)
Para além da curva da estrada
Talvez haja um poço, e talvez um castelo.
E talvez apenas a continuação da estrada.
Não sei, nem pergunto.
Enquanto vou na estrada antes da curva
só olho para a estrada antes da curva,
porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro lado
e para aquilo que não vejo.
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
Há beleza bastante em estar aqui
e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
esses que se preocupem com o que há
para além da curva da estrada.
Essa é que é a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá,
quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva.
E antes da curva
há a estrada sem curva nenhuma.”


A estrada da vida não é retilínea. Algumas vezes parece que estamos na BR 116 ou
101 próximo à Costa das Baleias, Bahia, indo descansar na Praia do Grauçá, em Barra de
Caravelas. Retas enormes, uma curva de quando em quando. Em outras fases a estrada da
vida é sinuosa. Sinto-me na BR 381 entre BH e João Monlevade, curva sobre curva, numa
imparável dança do volante. Conceda-me um direito a um café e queijo frescal em Nova
União antes de aprofundar nossa prosa.


Fernando Pessoa foi quem me transportou à estrada da vida em seus versos e me pôs antes
da próxima curva. Ela está lá, silenciosa, misteriosa, quieta. E por lá passaremos sem saber o que há
para além dela. Almas inquietas e corações ansiosos perguntam: O que há além da curva? Fernando
Pessoa responde – ou melhor, não responde – dizendo “Talvez haja um poço, e talvez um castelo, e
talvez apenas a continuação da estrada. Não sei, nem pergunto”. Nessa declaração poética habita, à
luz da filosofia e psicologia existencial, o mistério da existência aberta e a angústia das
possibilidades como condição humana. Dela podem nascer o desespero, o medo (antecipado), mas
também a esperança e o sentido. Depende de como se viaja. Se o que há além da curva é sempre um
mistério, tanto para coisas boas quanto ruins, por que só esperar o pior? Por que tanto desalento? Tal
ausência de certezas não é, em si, um problema da vida, mas o que Kierkegaard chama de
“condição” necessária, pois exige de nós o “salto da fé” que nos faz avançar mesmo sem garantias,
para que cada passo, cada metro, cada escolha e decisão, me faça ser quem sou e o que vou me
tornando, dito de outro modo, nos constitua de modo único e autêntico. Trata-se de um convite da
psicologia existencial a encarar a curva não como uma ameaça, mas como a própria tessitura da
vida.


Se bem entendida, essa forma de ver a vida suscita sentido e esperança, e afasta a ansiedade
do viver. Perceba que, ao contrário do que pode parecer em primeira vista, o eu lírico não está com
medo do amanhã. Não está fugindo, mas indo. Apenas entendeu – quiçá lendo Agostinho – que a
felicidade está também no trajeto, e decidiu contemplar as belezas do presente… antes da curva.
“Enquanto vou na estrada antes da curva, só olho para a estrada antes da curva, porque não posso
ver senão a estrada antes da curva. De nada me serviria estar olhando para outro lado e para
aquilo que não vejo. Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos. Há beleza bastante em
estar aqui e não noutra parte qualquer (…) Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
Há a estrada sem curva nenhuma”.


O ansioso viaja como quem quisesse, sem contudo poder, controlar e decidir tudo o que está
além da curva, ou apostando todas as suas fichas de felicidade no que lá está. É um desperdício da
viagem, diria Pessoa. A ansiedade e a preocupação não eliminam as dores do amanhã, antes, minam
a energia e o desfrute de agora. Aqui ouço o Mestre no Caminho dizendo a seus viajantes:
“Portanto, não se preocupem com o amanhã, pois o amanhã trará as suas próprias preocupações.
Basta a cada dia o seu próprio mal” (Mateus 6:34).


Por falar nEle, aqui vão algumas certezas nessa estrada de incertezas. Nesse poema,
Fernando Pessoa usa Alberto Caieiro, um heteronômio cético que talvez estranhasse minhas
próximas ponderações. É que, à luz da espiritualidade judaico-cristã, não caminhamos sozinhos. Há
uma Presença que nos acompanha, mesmo quando não O vemos. Há uma promessa que ecoa no
invisível: “Mesmo quando eu andar por um vale de trevas e morte, não temerei perigo algum, pois
Tu estás comigo” (Salmo 23:4). Não sei o que há depois da curva da estrada, mas sei “Quem” está
lá e que não estarei sozinho. Ele está comigo aqui e estará lá. Eis minha primeira certeza minha e
ela me conforta aqui e me encoraja a prosseguir. A segunda certeza é que, após curvas e mais
curvas, há um destino final certo. E Ele também está lá. Ele é, de certa forma, o próprio destino. E,
no coração da fé cristã, O caminho é mais que uma metáfora, é uma Pessoa presente. E Ele também
é, em certo sentido, o próprio Caminho, e assim se apresentou: “Eu Sou o Caminho” (João 14:6).


Assim a vida (e “A Vida”) nos educa na esperança – essa virtude dos que aceitam não
controlar tudo; esse remédio contra a ansiedade e desespero; essa arma dos que sabem que viver é
caminhar entre o visível e o invisível, entre o concreto e o mistério, entre a terra que pisamos e o
céu que buscamos. E, para ser feliz, é mistér ver a vida como uma viagem com trajeto, destino e
propósito. Viver é deslocar-se aproveitando cada metro, dando saltos de fé a cada nova curva e
desfrutando presenças em cada reta dotada de horizonte, na “estrada sem curva nenhuma” que há
antes de cada curva.


Prossiga, apesar das incertezas e, por que não dizer, por causa delas. Prossiga, motivado e
amparado pelas certezas possíveis. Assim a vida se torna uma jornada de fé e esperança, onde há
felicidade. A curva na estrada deixa de ser ameaça e se transforma em um convite. Convite a
confiar, a decidir, a escolher, a viver o agora, a suportar dores, a contemplar o belo, a abraçar o
mistério, a crer no porvir. Porque há estrada além da curva. Sobretudo, porque há presença no
caminho. E porque há Caminho.

Pr. Marcelo Verdan

Pastor da PIB Nova York e psicólogo

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